Todos somos criativos (os contabilistas)
Criatividade não só é pintar quadros ou escrever poesia – é encontrar soluções, é inventar maneiras de escapar a reuniões que podiam ser um e-mail, é perceber que aquela receita que saiu mal afinal pode chamar-se “experiência gastronómica”. Todos somos criativos. Até os contabilistas. Pelo menos é o que dizem quando tentam explicar certas declarações de IRS.
5/23/20245 min read
Dizem que a criatividade é inata, como o talento para assobiar perfeitamente ou para estacionar à primeira num beco estreito de Lisboa. Uma ideia bonita, mas será mesmo assim? Se olharmos para o nosso dia-a-dia, encontramos momentos de criatividade em todos nós — até na pessoa que decidiu que o ananás combinava com pizza. Polémica? Sim. Criativa? Certamente.
A verdade é que a criatividade não é só desenhar, pintar quadros, escrever poesia ou inventar músicas que nos fazem chorar nas campanhas de Natal. A criatividade está em todo o lado.
Por exemplo, uma pessoa que consegue convencer a Autoridade Tributária de que uma ida ao restaurante com preço astronómico foi “uma despesa de consultoria” está a dar um verdadeiro espetáculo de criatividade aplicada. E ainda há quem ache que esta é uma competência exclusiva dos artistas.
O problema é que muitos crescemos a ouvir frases como “pára de inventar" ou “estás sempre na lua” ou, "desenhar não é o teu forte". E, assim, pouco a pouco vamo-nos convencendo que criatividade é uma coisa de gente iluminada, que mora em lofts industriais e bebe sete cafés por dia, mas não é.
A criatividade é o que faz alguém perceber que se perder a tampa da panela, pode usar um prato, ou perceber que, se a sopa está demasiado salgada, a solução não é deitar mais água, mas sim chamar-lhe “sopa do mar” e dizer que é uma experiência sensorial.
É a capacidade de ligar pontos aparentemente sem relação, como quando olhamos para o saldo bancário e percebemos que aquele “pequeno-almoço fora de casa” afinal já equivale a um bilhete de avião.
Mas afinal, para que é que isto serve?
Os especialistas dizem que a criatividade melhora a resolução de problemas, o bem-estar emocional e até a comunicação. Portanto, podemos concluir que um livro de colorir pode ser mais eficaz do que seis anos de terapia(1). Mas não é só isso. A criatividade também nos ajuda a sobreviver no mundo real:
No trabalho - Pode ser útil quando temos de explicar à chefia porque é que aquele relatório ainda não está pronto (histórias de ficção, convenhamos, são uma forma de criatividade).
Na vida social - É essencial para evitar eventos familiares (“oh, não posso, estou fora” – mesmo quando se está apenas fora do sofá).
Na sobrevivência urbana - É indispensável para encontrar estacionamento grátis no centro de uma cidade.
Para evitar conflitos desnecessários - Como responder com “Hmm, interessante” quando alguém insiste que a Terra é plana.
Para encontrar novas utilizações para objetos do dia a dia - Exemplo clássico: uma cadeira pode ser um suporte para roupa, um escadote improvisado ou um bloqueador de porta quando o vento insiste em fechá-la.
E dá para treinar a criatividade?
Dizem que sim. Há métodos complexos e cursos que custam o equivalente a uma renda, mas no fundo é simples, e eu que já vi pessoas a criarem receitas de bolo na caneca com três ingredientes e um micro-ondas, acredito. Algumas ideias para começar:
Observar o mundo com curiosidade - Reparar nas pequenas coisas, como o facto de os supermercados mudarem os produtos de sítio só para nos obrigar a percorrer os corredores todos.
Mudar de rotina - Experimentar um caminho diferente para casa, ou simplesmente entrar no autocarro errado e descobrir que há zonas da cidade que nunca pensámos visitar. ou depararmo-nos com uma aventura inesperada.
Aceitar o erro - Lembrar que algumas das maiores invenções da humanidade surgiram por acaso. O Post-it(2), por exemplo, nasceu de uma cola que não colava bem. Por isso, se fizermos algo que não resulta, podemos sempre dizer que foi um teste.
Portanto
Se ainda achas que não és uma pessoa criativa, repensa.
Criatividade não é um talento raro, reservado a génios e artistas excêntricos. É uma ferramenta de sobrevivência, é o que nos permite encontrar soluções ou improvisar quando o plano A (ou B ou C) falha.
Se todos somos criativos? Claro. Se usamos essa criatividade da melhor forma? Bem, isso já depende. Mas não vamos julgar. Afinal, há pessoas que decidiram que “bolo de arroz”(3)é um bom nome para um bolo que não tem arroz, e isso também é uma forma de criatividade.


1) Terapia vs. livros de colorir - Complemento, não uma substituição
Os livros de colorir para adultos tornaram-se populares nos últimos anos como uma forma de reduzir o stress e promover o relaxamento. Existem estudos indicam que atividades criativas podem ajudar na regulação emocional, mas nunca substituem a terapia profissional, claro.
Sabias que o psiquiatra Carl Jung já utilizava mandalas pintadas à mão como ferramenta terapêutica no início do século XX.
Lê aqui: Curry, N. A., & Kasser, T. (2005). “Can Coloring Mandalas Reduce Anxiety?” Art Therapy: Journal of the American Art Therapy Association. DOI: 10.1080/07421656.2005.10129441
Crónica: Miguel Esteves Cardoso: https://www.publico.pt/2023/06/28/opiniao/cronica/viva-bolo-arroz-2054762
“Porquês” bolo de arroz: https://rr.pt/artigo/45539/porque-e-que-o-bolo-de-arroz-se-chama-assim-se-nao-leva-arroz
2) O Post-it – Um erro que passou a ser um ícone da criatividade
Nos anos 70, o químico Spencer Silver, da 3M, tentava desenvolver um adesivo ultra-forte, mas criou uma cola que não fixava permanentemente. Durante anos esta invenção foi ignorada, até que Art Fry, outro engenheiro da empresa, teve a ideia de usá-la para fazer marcadores de página reposicionáveis. O Post-it nasceu assim: um erro científico + um novo contexto = um produto inovador.
Lê aqui:
Livro: Gladwell, M. (2002). The Tipping Point: How Little Things Can Make a Big Difference. Little, Brown and Company.
História oficial: History Timeline: Post-it® Notes
3) O bolo de arroz – Um nome que sobreviveu à mudança da receita
Apesar do nome, o bolo de arroz português atualmente não contém arroz. Originalmente, a receita levava farinha de arroz, que lhe conferia uma textura leve e delicada. Com o tempo, a farinha de trigo tornou-se predominante, mas o nome permaneceu. O bolo é um clássico da pastelaria portuguesa, vendido em formas de papel (não comestíveis) e acompanhado por um café ou um galão nas típicas pastelarias do país.
Lê aqui:
Crónica: Miguel Esteves Cardoso: https://www.publico.pt/2023/06/28/opiniao/cronica/viva-bolo-arroz-2054762
“Porquês” bolo de arroz: https://rr.pt/artigo/45539/porque-e-que-o-bolo-de-arroz-se-chama-assim-se-nao-leva-arroz
Notas e Curiosidades

